Sobre ser mulher, gente solitária e gosto pra filmes (Meu nome é Chihiro)

Eu assisti Call me Chihiro (2023, Netflix) [www], um dia antes do dia da mulher e fiquei pensando em escrever um post sobre ele pra postar no dia 08, porque ele tem algo que me chamou atenção e deixou reflexiva: não tem nenhuma cena de violência envolvendo a protagonista feminina. Mesmo assim, eu passei o filme inteiro esperando algo de ruim acontecer. Algo típico de acontecer com mulheres sozinhas na rua ou interagindo com homens. E não faltaram oportunidades para algo ruim acontecer: a protagonista era profissional do sexo; leva um mendigo pra casa e banha ele numa banheira; beija e tem relação sexual com um cara aleatório que conheceu numa noite; ela pega carona com um antigo chefe dela de quando trabalhava como acompanhante e em nenhum momento essas interações insinuam algo desconfortável, ou sexual. Nem mesmo a cena de sexo. 

Eu fiquei lembrando de quando assisti A Quiet Girl (2022), em que eu ficava esperando sempre algo de ruim acontecer com a menina, por ser uma criança morando com estranhos. Isso me fez querer chorar, sabe? Perceber que quando se trata de figuras femininas em filmes, eu espero sempre o pior porque é o comum. E quando nada acontece, eu fico aliviada. Sendo que eu podia só curtir o filme sem pensar nisso. Era o que eu queria, inclusive.

Não por acaso, eu espero o pior porque é o que normalmente retratam nos filmes, nas série, na mídia diária monitorando o aumento dos números de violência. Mas eu fiquei aliviada que mesmo com todas as possibilidades, a direção desse filme escolheu não abordar as possíveis violências sofridas pela personagem no trabalho antigo, por exemplo. E sim, é uma escolha. Uma história pode ser contada por diversas abordagens e, quem conta, pode escolher dar foco no que quiser. Então quando eu assisto um filme, costumo questionar por que escolheram contar dessa forma? Por que escolheram colocar essa cena? Por que escolheram? 

Devido o dia da mulher, o mês foi repleto de programas especiais voltados pro tema na televisão. No sábado, dia 4, a Karla Castanho fez sua primeira aparição na tv, desde toda a desgraça que aconteceu na vida dela ano passado e ver ela me fez lembrar que eu escrevi sobre o ocorrido, que não envolvia só o caso dela, mas o sentimento de luto por todos as violências quando acontecem [www]. Também lembrei que escrevi sobre uma música que o Stromae lançou no dia da mulher ano passado e resultou no melhor álbum do ano [www]. A música é uma crítica, o clipe também, muito geniais. E relendo esses escritos, eu fiquei pensando em como o dia das mulheres é sempre dividido entre homenagens, rosas e denúncias. E que é cansativo. Ás vezes eu quero só as rosas mesmo, sem ter que pensar muito, mas é triste eu não poder só aceitar as rosas, ou só ficar em silêncio o dia todo. E nem é sobre as rosas... é sobre não poder descansar, ou não poder baixar a guardar, não só em relação a data. A data é o de menos. É na vida mesmo, é andando por ai, é assistindo um reality show na tv aberta ou um filme, por exemplo. 

E apesar de eu estar aqui destacando o filme no meio disso, "Meu nome é Chihiro" não aborda o dia das mulheres, nem mesmo apresenta um discurso feminista para mulheres japonesas e nem é preciso isso para considerá-lo um ótimo filmes com mulheres (com ou sem intensão de empoderamento e representatividade). É um filme muito bonito e sutil, mas como eu posso chamar algo que é leve e pesado ao mesmo tempo? Sei que é o meu tipo preferido de narrativa.

 

Esses dias eu comentei em um blog, dizendo que meu gênero preferido de livro é o que envolve cartas, com histórias contadas em datas espaçadas à cada folha e fiz uma relação com o formato de blog que me lembram esse tipo de livro, como As Vantagens de Ser Invisível. Daí eu percebi que esse filme é assim, também. Mostra o cotidiano de uma pessoa, em sua vida normal, sem um tema central, sem um grande propósito, sem um mistério a resolver, sem um romance a aprofundar, só a vida se passando em dias espaçados. E assim, eu fui conhecendo um pouco sobre a Chihiro, vendedora de bentō.


Um dia ela convida uma amiga pra beber, noutro dia ela visita alguém no hospital, noutro dia ela sai pra comer lámem, algum dia ela tá muito triste pra levantar da cama, é tudo tão aleatório e mesmo assim não é desconexo, nem confuso de acompanhar. Tem vezes que a história parece não ser sobre ela, mas sobre as várias pessoas com quem ela vai interagindo ao longo da história e que vão adicionando sua trama cheia de nós. São os diálogos e interações que fazem a conexão dos acontecimentos e ajudam a desvendar a figura da própria Chihiro. A comida também tem seu papel importante, como em toda história japonesa. Em algum momento do filme, falam que comer com as pessoas certas deixa a comida mais gostosa e o filme é uma sucessão de cenas em que a Chihiro leva comida pras pessoas e come junto com elas. Enquanto uma das personagens tem dificuldade de sentir o gosto da comida, nos jantares em família apesar da mãe ser uma eximia cozinheira. 

 

É curiosos que um filme sem ação nenhuma, dure 2h11min, com muita história pra contar e sem se tratado de filme asiático, eu não questiono a duração porque é sempre bem aproveitada. Você chega no final com a sensação de que foi suficiente e necessário (diferente de muitos blockbusters por ai). Esse filme tem o que eu mais amo de filmes japoneses, que é juntar pessoas aleatória e fazer uma história acontecer alí, sem precisar de muito. Isso é o que mangá costuma fazem muito bem também e, pelo visto, o filme é inspirado num mangá mesmo. Por algum motivo subliminar, eu consigo identificar quando um filme é baseado em mangá.

Esse filme me lembrou várias coisas que eu gosto por causa desse elemento do cotidiano que parece ser sobre nada. A Chihiro me lembra muito a pessoa misteriosa da Anonymous no mangá Our Dreams at Dusk e como ela reúne pessoas distintas que se conectam entre si, e depois ela só some. O ritmo do filme também me lembrou os filmes Ocean Waves e Whisper of the heart (que é um dos meus filmes preferidos do Studio Ghibli). O nome disso é Slice of Life, novamente batendo a minha porta e eu abir. 

O filme termina deixando uma sensação de que a Chihiro é como uma entidade que une as pessoas em torno de si e cria um ambiente agradável pras pessoas. O contrário de Girl from Nowhere (2019, Netflix), em que a menina é como uma entidade do caos visitando escolas e despertando o pior nas pessoas. De certa forma, Chihiro também é uma garota de lugar nenhum. 

Quando eu perguntei como chama um filme leve e pesado ao mesmo tempo, é que a história despertou em mim tanto tranquilidade e felicidade, quanto melancolia. A Chihiro parece uma pessoa desprendida e livre, a gente vê ela feliz a maior parte do filme, então você vai chegando mais perto, conhecendo mais e percebendo que ela é só e um pouco apática. Em algum momento, o ex-chefe dela comenta que ela era como um fantasma, quando a conheceu pela primeira vez. Essa fala traz uma nova percepção sobre ela. Não é como se ela não sorrisse ou não interagisse, mas é como se ela estivesse desligada das pessoas, mas interessada nelas mesmo assim. Em outro momento, ela fala o que seria um moto da personagem: ela acredita que as pessoas são alienígenas de diferentes planetas e sendo assim, eles só podem se conectar com quem é do mesmo planeta que você. Essa frase é enfatizada algumas vezes no filme, mas no final ela fica mais evidente. Ao longo do filme, a Chihiro ajuda indiretamente as pessoas a encontrarem outras pessoas do mesmo planeta que elas. 

 
 

Eu queria achar um vídeo da cena quase final, quando essa fala se consolida como um momento em que ela se desliga da realidade. Na cena, estão todos os personagens unidos pela Chihiro em num terraço comendo um churrasco e ela tá olhando pra galera numa roda conversando entre si, então a câmera acompanha em um giro, focando pessoa por pessoa, até voltar pro lugar onde ela tava sentada, agora vazio. Não é como se ela evaporasse ou nunca tivesse existido, mas fica aí aberto a interpretações. 

  

Eu li sobre o filme no Tem um Coelho no Cinema, falando que é preciso estar em sintonia com um filme desses porque ele é introspectivo. Essa é uma ótima definição do filme mesmo.

Filmes num geral, despertam emoções e interpretações tão distintas que nunca dá pra recomendar pra ninguém com base no meu próprio gosto. Eu só posso dizer que gostei bastante e o que me fez me conectar tanto. Eu amei como as informações são dispostas ao longo da trama e como algumas cenas deixam em aberto o que aconteceu e porque aconteceu. Só aconteceu. A vida acontece. Na sorte a gente acha alguém do mesmo planeta que nós, pra compartilhar algo juntos, talvez não pra sempre, mas pelo menos por alguns simples e bons momentos, como ouvir a chuva dentro de um carro, ou descascar brotos de bamboo juntos.
 
  

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