Era apenas 3 da tarde, mas o cansaço de uma vida pesava em seus olhos, profundos por trás dos óculos de grau. Eu o observava pela janela, do lado de fora, e ele olhava na minha direção, mas parecia não me ver de fato, mesmo que naquele momento os seres vivos tivessem a permissão de me enxergar. O direito de ver em figura o medo abstrato e subjetivo que os assombrou a vida toda.
Entrei pela porta já trancada há muito tempo e disse:
- Hora de ir.
Ele respirou fundo e, sem tirar os olhos da janela, respondeu:
- Achei, e até desejei, que você viesse antes.
Eram poucos os que não se desesperavam, poucos os que me recebiam como se fosse uma velha amiga. Claro que eu sabia como cada um reagiria, eu conhecia todos eles, e mesmo assim alguns me surpreendiam. O objeto pendurado em seu pescoço revelava um homem que já havia visto de tudo, vivido o suficiente. Isso explicava um pouco a calmaria, a tranquilidade em partir.
Mesmo já sabendo a resposta, perguntei:
- Vou permitir que leve apenas uma coisa contigo. O que vai ser?
Ele finalmente tirou os olhos da janela e me encarou.
- É isso. É só isso que desejo levar. – respondeu apontando para o peito.
Pobres aqueles que se agarravam a muitas coisas. Essa escolha final era, para a maioria, a mais difícil de todas. Porém, o homem a minha frente sabia que não precisava levar nada, mesmo assim, escolheu. Já havia escolhido há muito tempo. Antes mesmo daquele objeto ser ferramenta de seu ofício.
Pendurada em seu pescoço como se o abraçasse, ela tinha se tornado só uma alegoria, uma representação de tudo que seus olhos e coração haviam visto. Todos os registros eram gravados em sua mente antes mesmo de apertar o botão.
As inúmeras caixas, repletas de negativos, que nasciam a partir deste simples gesto tinham gosto de eternidade, mas não eram, da parte dele, uma tentativa de me vencer. Já as havia doado para aqueles que insistiam em construir acervos feitos de memórias. Para aqueles que tentavam me vencer.
Conclui, então, que ele me via sim através da janela, só estava concentrado decorando aquele último enquadramento, aquele último registro.
Olhei para as lentes daquele objeto, que mesmo velho, lutava contra o tempo, mas não as vi. Estavam tampadas. Isso combinava um pouco com os olhos cansados que me encaravam. Eles haviam registrado muito mais do que elas jamais conseguiriam. A viagem na qual ele iria embarcar comigo quase não era nada perto da viagem que ele havia feito naquela existência.
- Por quê? Você sabe que não precisa mais dela.
Ele se levantou do sofá e deu um passo em minha direção, pronto para ir.
- Eu sei. Mas ela é tudo o que me restou.
Texto escrito durante uma Oficina com a Aline Bei ❤️