Mereologia
Mereologia (da raiz Grega μέρος - compartilhar ou partes; sufixo -logia - discurso, estudo, saber) é uma área da lógica e da filosofia que estuda as relações de participação, de partes com um todo, da relação das partes dentro de um todo. O termo foi criado no início do século XX pelo filósofo e matemático Stanisław Leśniewski, para designar uma teoria particular que comporia o sistema formal com o qual ele pretendia fundamentar a lógica e a matemática. O termo assumiu um sentido mais geral, e hoje denomina qualquer teoria sobre esse tipo de relação, como também o campo de estudo em torno dela.[1]
O interesse pelo estudo dessas relações e dos problemas filosóficas implicados acompanha a filosofia desde seu início. Assim, muitos debates metafísicos, cosmológicos e lógicos entre os pré-socráticos já continham elementos de uma teoria das relações partes-todo—a defesa eleática da uniformidade e indivisibilidade do Ser, ou a tese atomista de uma unidade indivisível subjacente formando todas as coisas. Em outras tradições filosóficas, como a filosofia chinesa, também desenvolviam tese mereológicas—como a escola Míngjiā, que aderia à uma tese pluralista, ou nos debates das escolas filosóficas do Jainismo, que giravam em torno do teses semelhantes ao atomismo. A mereologia está presente no pensamento de Platão, Aristóteles e das escolas helenísticas, como o Epicurismo e Estoicismo.[2]
Porém, as maiores contribuições para o desenvolvimento de uma teoria formal da participação aconteceram principalmente na obra de Franz Brentano e seus alunos, como Edmund Husserl nas Investigações lógicas (1901). E foi com as publicações de Leśniewski que a mereologia ganhou seu caráter de uma teoria pura das relações de participação, apesar de sua influência ter sido inicialmente mediada por outros autores, dado o acesso restritivo ao original em polonês na perspectiva da comunidade filosófica geral.[3]
História
[editar | editar código-fonte]Discussões de parte e todo surgiram como proeminentes no monismo eleático, como em Parmênides e Melisso.[4] Em resposta aos seus problemas lógicos, Platão realizou uma análise inaugural da mereologia no seu diálogo Parmênides, em que aborda sobre as relações existentes entre as subdivisões e totalidade no Um;[5] mas são também encontradas sofisticadas teorias platônicas de parte e todo em seu Teeteto e Timeu.[6]
Euclides, em Elementos, define um ponto como sendo aquilo que não tem partes.[7]
É também um tópico principal na Metafísica, Física, Tópicos e Das Partes dos Animais de Aristóteles; em De Divisione e In Ciceronis Topica de Boécio; e nas discussões de ontologistas medievais e filósofos escolásticos como Garlando Computista, Pedro Abelardo, Tomás de Aquino, Raimundo Lúlio, João Duns Escoto, Walter Burley, Guilherme de Ockham e Jean Buridan. Aparece na Logica Hamburgensis (1638) de Jungius, na Dissertatio de arte combinatoria (1666) e Monadologia (1714) de Leibniz e nos escritos iniciais de Kant Gedanken (1747) e Monadologia physica (1756).[3][8]
Na modernidade recente, Alfred North Whitehead foi um dos primeiros a desenvolver axiomas à teoria de partes e todos, a qual ele chamava de "teoria da extensão".[9]
Gosma
[editar | editar código-fonte]Em mereologia, chama-se de "gosma" (em inglês: gunk) a consideração de que as partes nunca se atomizam: "será que tudo é feito de "gosma" sem átomos—como Lewis (1991: 20) chama—que se divide para sempre em partes cada vez menores?".[3]
Na doutrina de homeomerias ou de "tudo em tudo", Anaxágoras é por vezes interpretado como apresentando em sua teoria um caráter do tipo "gosma".[10][11] Platão, no Parmênides, avança experimentos mentais de análise mereológica considerada a certo ponto do tipo "gosma", como na sua terceira dedução.[12] Para ele, na sétima dedução, em Parmênides 164d–c, isso existiria caso se desconsiderasse a existência do "Um" e ocorressem subdivisões de partes ad infinitum: como se, ao se visualizar uma poeira infinita, cada parte pequena a princípio se apresenta com pouca definição; mas, sempre em se ampliando o olhar, suas delimitações passam a ser vistas como ilusórias, e mostra-se que, na verdade, é formada por outras partes menores, sem nunca se alcançar átomos unitários:[13]
"Mas cada massa deles é ilimitada em número, e mesmo que você pegue o que parece ser o menor pedaço, ele muda de repente, como algo em um sonho, o que parecia ser um é visto como muitos, e em vez de muito pequeno, é visto como muito grande em comparação com as frações minúsculas dele. (...) Tais massas de outros seriam outros uns dos outros, se os outros existem e Um não existe. (...) Haverá, então, muitas massas, cada qual parecendo ser uma, mas que não é uma, se o Um não existe?"[14]
Outros pensadores a discutirem sobre elementos lógicos que envolvem esse conceito de uma "gosma" material incluem Zenão, Aristóteles, Guilherme de Ockham, René Descartes e Alfred Tarski.[15][16][17] As primeiras menções contemporâneas ao conceito encontram-se nos trabalhos de Alfred North Whitehead e Bertrand Russell, e posteriormente nos escritos de David Lewis.[17]
Ver também
[editar | editar código-fonte]- Contínuo (teoria)
- Henologia
- Holismo e reducionismo
- Infinito atual e infinito potencial
- Metéxis
- Navio de Teseu
- Teoria dos conjuntos
Referências
[editar | editar código-fonte]- ↑ Cotnoir & Varzi 2021, pp. 18.
- ↑ Cotnoir & Varzi 2021, pp. 19.
- ↑ a b c Varzi, Achille (2016). «Mereology». Stanford Encyclopedia of Philosophy. Consultado em 9 de julho de 2022
- ↑ Fano, Vincenzo; Graziani, Pierluigi; Marcacci, Flavia; Tagliaferri, Mirko (13 de agosto de 2020). «Melissus as an Analytic Metaphysicist». Axiomathes (em inglês). ISSN 1572-8390. doi:10.1007/s10516-020-09507-6. Consultado em 10 de julho de 2022
- ↑ Harte, Verity (19 de setembro de 2002). Plato on Parts and Wholes: The Metaphysics of Structure (em inglês). [S.l.]: Clarendon Press
- ↑ Calosi, Claudio; Graziani, Pierluigi (2 de junho de 2014). Mereology and the Sciences: Parts and Wholes in the Contemporary Scientific Context (em inglês). [S.l.]: Springer
- ↑ Simons, Peter (12 de junho de 2018). «Leśniewski and Mereology». In: Garrido, Ángel; Wybraniec-Skardowska, Urszula. The Lvov-Warsaw School. Past and Present (em inglês). [S.l.]: Birkhäuser
- ↑ Cotnoir, A. J.; Varzi, Achille C. (8 de julho de 2021). Mereology (em inglês). [S.l.]: Oxford University Press
- ↑ Rosenkrantz, Gary; Hoffman, Joshua (2011). Historical Dictionary of Metaphysics (em inglês). [S.l.]: Scarecrow Press
- ↑ Arsenijević, Miloš; Popović, Saša; Vuletić, Miloš (20 de julho de 2019). «Anaxagoras, the Thoroughgoing Infinitist: The Relation between his Teachings on Multitude and on Heterogeneity». European journal of analytic philosophy (1): 35–70. ISSN 1849-0514. doi:10.31820/ejap.15.1.3. Consultado em 10 de julho de 2022. Cópia arquivada em 18 de junho de 2022.
The idea that Anaxagoras was a gunk-theorist is not new. Sider (1993), Markosian (2004 and 2005), Nolan (2006), and Hudson (2007) all credit Anaxagoras' metaphysics with the notion of gunk
- ↑ Marmodoro, Anna; Roselli, Andrea (12 de novembro de 2020). «Power gunk, or unlimitedly divided powers». In: Zilioli, Ugo. Atomism in Philosophy: A History from Antiquity to the Present (em inglês). [S.l.]: Bloomsbury Publishing
- ↑ Meister, Samuel. «Gunk in the Third Deduction of Plato's Parmenides». Consultado em 10 de julho de 2022
- ↑ Long, A. G. (26 de setembro de 2013). Plato and the Stoics (em inglês). [S.l.]: Cambridge University Press
- ↑ «Plato, Parmenides, section 164d». www.perseus.tufts.edu. Consultado em 10 de julho de 2022
- ↑ Arntzenius, Frank (2011). Gunk, Topology, and Measure (PDF). The Western Ontario Series in Philosophy of Science. 75. [S.l.: s.n.] pp. 327–343. ISBN 978-94-007-0213-4. doi:10.1007/978-94-007-0214-1_16
- ↑ Sider, Theodore (1993). «Van Inwagen and the Possibility of Gunk». Analysis. 53 (4): 285–259. JSTOR 3328252. doi:10.2307/3328252
- ↑ a b Zimmerman, Dean (1996). «Could Extended Objects Be Made Out of Simple Parts?: An Argument for "Atomless Gunk"». Philosophy and Phenomenological Research. 56 (1): 1–29. JSTOR 2108463. doi:10.2307/2108463
Bibliografia
[editar | editar código-fonte]Cotnoir, A. J.; Varzi, Achille C. (2021). Mereology [Mereologia] (em inglês). [S.l.]: Oxford University Press. ISBN 9780198749004
Graziani, Pierluigi; Calosi, Claudio (2014). Mereology and the Sciences - Parts and Wholes in the Contemporary Scientific Context [Mereologia e as Ciências - Partes e Todos no Contexto Científico Contemporâneo] (em inglês). [S.l.]: Springer Cham. ISBN 978-3-319-05356-1