O Mundo Abaixo Do Meu Umbigo

tenho dormido pouco coisas da idade
mas hoje acordei cedo para ver o meu amor
poucas forças me movem — amar
escrever e trabalhar
o futuro normalmente já está posto de antemão
procuro estoicamente não me preocupar
mas o amanhã que já aconteceu
será decisivo para o país
indecisos decidirão que rumo tomaremos
agora já está decretado para sempre
uma nação separada mas que já é
antes de sair deixei recicláveis na calçada
enquanto caminho para o ponto
por mim passa uma senhora que revista sacos
sei que ficará satisfeita com os meus restos declinados
minhas sobras a alimentarão
assim como me refestelo de dejetos

as minhas inspirações
me escrevo paladino de manhãs solares
sentindo que me equilibro à beira
do buraco escuro da existência descendente de assassinos
que mataram a si mesmos esperançosos
sem buscar o que lhe são mais íntimos
de norte a sul a bipolaridade
de este a oeste a singularidade
do trajeto luminar todos que vão
sem sentido vão sequer que fosse
enquanto presencio esgares e palavras de ordem
por ruínas muros murais de arte rueira
limpo minhas fossas nasais de restolhos
renite renitente em choque térmico
passeio em ônibus me turistando
em sólida solidão coletiva sobre quatro rodas
em pele e carne que (em) breve sentirá
outra pele e outra carne sendo uma só

não consigo transcender além
de meu mundo meu umbigo
mal visito o território visto vestido de antagonismo
no entanto estou indo amar por metrô
trilhas marcadas por trilhos assentados
por mortos
mais alguns quilômetros transfiro o centro
do universo para abaixo do meu umbigo
deixo marcas de meus dedos no corpo da amada
gozo em desespero milhas de voos em jatos
em clara manhã de sol antes da tempestade
enquanto ouço (ou penso ouvir) desesperançado
cascos de cavalos no asfalto…

Foto por cottonbro studio em Pexels.com

O Crime

Cometi um crime, hoje! Se bem que justificável. Tive que tirar essa pequena planta que houve por bem se incrustar na parede. Tive que arrancá-la porque, se a deixasse progredir, causaria um bom estrago. Já aconteceu antes. Causou infiltrações e deslocamento de uma parede, devido ao engrossamento do tronco e das raízes. Um dia, quando o ser humano não estiver mais ocupando a face deste planeta, talvez as plantas tenham chance de prevalecer, finalmente…

Carta Ao Amor Ideal

Amor Ideal, como vai?

Deve saber que há muitos que o procuram em vão, não?

Onde se esconde?

Tenho por mim que, de tão perfeito, você passe despercebido em forma de cumulus nimbos que interdita a luz do Sol apenas para refrescar o calor.

Ou passa disfarçadamente como uma simples sardinha num grande cardume no Atlântico.

Com certeza, morou por um instante nos olhos verdes da moça triste.

Dever caminhar em grupo de pinguins que se juntam para enfrentar a tempestade de neve.

Estou quase certo que o vi de relance no arabesque preciso da bailarina.

Tenho por mim que esteja no beijo de boa noite de uma mãe em seu filho… também. Mas não apenas.

Sei que está no gesto de carinho do namorado no cabelo da amada, ainda que se restrinja a existir em tempo escasso, diante do cotidiano de dissabores.

Todos o desejam eterno, mas somos mortais e nossos desejos urgentes, sem compromisso com o que é permanente. Está nas ondas do mar que se quebram em ruídos d’água espumosos. No entendimento de seu fluxo e refluxo.

Está no quarto 102 de um hotel barato do centro em que os amantes se bastam por tempo determinado.

Caminha nos primeiros passos claudicantes da criança que meses antes mergulhava na barriga materna.

Outro dia, eu o encontrei numa palavra singela, mas que me fez perceber a sua eternidade — “é”.

Amor Ideal, sou dos poucos que desacredita em sua existência sempiterna.

Eu me surpreenderia se eu o encontrasse por aí, ao procurá-lo com insistência. Assim como a Felicidade, deve estar em momentos de descuido…

Foto por Pixabay em Pexels.com

O Falso E O Real

“O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.” (Carlos Drummond de Andrade)

Para mim, escrever sobre o que é real e não é, é muito fácil. Tudo é real, incluindo a falsidade e o que é falso. Aliás, dadas as circunstâncias, o status do que é falseado ganha a projeção de realidade incontestável. Com o advento da Inteligência Artificial, nos acostumaremos a crer em discursos de gente morta. O menino do Sexto Sentido nos diz que vê gente morta olhando dentro de nossos olhos. Só saberemos que não somos nós, os mortos, se a nossa pele arrepiar.

A pele não mente, graças a Deus! Quando estamos com alguém, o corpo se assanha com as suas respostas que reverberam enquanto decoramos a superfície do corpo que nos antepõe pelo toque de nossas mãos. A depender dos seus movimentos, entradas e saídas, bocas, línguas, dedos, palavras ditas, entrecortadas e caladas por beijos que respondem sem duvidar. Eu elejo esta última ação como o objeto real, palpável, inebriante e permanente sobre todas as outras coisas — O Beijo. Ah! E a Morte

Foto por Pavel Danilyuk em Pexels.com

O Amor É Foda

por que não me chama?
que esta chama que me abrasa queima que dói…
nos unimos para brincar de fogo
coisa de jovens
ainda que muito mais jovens já fomos
bebemos um do outro a água
que saciou a sede mas não matou a seca
renascida a cada estação de dias
rios desviados e ventanias
ciclos de algo que não conhecemos a profundidade
sentimos que ainda não chegamos ao fim
por mais que estejamos partidos em mil pedaços
como que espatifados contra a concretude da realidade
lutamos contra as forças inequívocas da natureza
que nos moldaram os corpos fadados a desejar
em evoluções de cantos músicas danças
esperas e ânsias esperanças
quando deitamos levantamos
pernas braços membros expectativas
vontades redivivas para não morrermos em vida
que viver é morrer todos os dias
para a solidão que nunca deixa de tentar prevalecer
sobre a bola azul
resta amar é muito mar mais que terra
a boca fala e a língua diz muito tanto
as mãos tocam as peles se pronunciam
as entradas se expõem às penetrações
e abrasões com pupilas dilatadas
movimentos de placas terremotos
volta ao mundo consumação do gozo e da dor
da roda que gira e roda que roda
sem sentido e sem nexo
o sexo é sexo
mas o amor
ah! o amor é foda…