Joey’s review published on Letterboxd:
Amo quando a bizarrice e a genialidade caminham juntas. Tenho muito apreço por filmes que conseguem ser originais e criativos em sua forma de contar história, e esse já se tornou um dos meus queridinhos, justamente por conseguir englobar tantos elementos que eu amo com tamanha maestia. A direção de Fargeat é extremamente contundente ao firmar sua proposta, gosto muito do fato da crítica central ser escancarada e acusatória do início ao fim. A ideia é apresentada logo de cara, e é zero sutil, como um tapa na cara; ela bate incessantemente na tecla do etarismo que pesa sobre as mulheres, da indústria sexista, da pressão estética que assombra as mulheres e do quanto isso pode afetar nossa psique a ponto de nos fazer colapsar. O body horror é a cereja do bolo aqui: não há nada tão ruim que não possa piorar. São tantos os sentimentos provocados a cada cena... é uma experiência visceral! A diretora não se preocupa em se escorar em realismos ou explicações expositivas para certas perguntas, a ideia é propor ao espectador embarcar na brisa e se deixar levar por toda a loucura e perdição iminente da personagem interpretada brilhantemente por Demi Moore.
A vibe sombria do dilema de Elisabeth é extremamente bem interpolada a um humor ácido e muito cinismo. Há muitos enquadramentos perfeitamente alinhadinhos, à la Wes Anderson, certamente remetendo à perfeição almejada pela protagonista — beleza e simetria caminham lado a lado, afinal. O tom satírico cada vez mais em evidência serve justamente para cutucar. Um perfeito exemplo é a ironia da opressão ser representada por homens visivelmente na casa 70+, que desfrutam do seu êxito profissional sem que a aparência e idade nunca tenha sido um empecilho para esses. Inclusive, a vilanização desses personagens com um ar estereotipado é uma escolha narrativa perfeita, visto que as obviedades e arquétipos trabalhados aqui servem justamente como pilar pra fortalecer a mensagem da história gradativamente, o propósito é esse: escancarar quem é asqueroso e desprezível, apontar quem são as vítimas.
Esse tema é gatilho para a maioria de nós, mulheres, e o filme sabe explorar bem todo esse terror. É agonizante acompanhar o desespero de alguém para obter beleza e juventude a qualquer custo, recorrendo a métodos cada vez mais perigosos e invasivos, e consequentemente ficando cada vez mais distante de sua memória e identidade real. Muitas se tornam escravas da beleza por desmoronar psicologicamente diante de julgamentos e pressão social. Não temos nem o direito de envelhecer em paz, algo que é natural e inevitável passa a ser demonizado socialmente, visto como um fardo. É basicamente adotar uma insegurança e insatisfação que provém de outrem - a ideia de ser vista como perfeita diante dos olhos dos outros, para então ficar satisfeita consigo mesma.
A ideia de "dividir" uma única pessoa em dois corpos e personalidades diferentes é absurdamente brilhante. Um mix de Matrix com Black Mirror que me fez vibrar. A ambivalência entre as duas é perfeitamente estabelecida, tanto que é incrível ver como a Sue se fetichiza, como uma persona narcisista e obcecada por si mesma, cheia de altivez, enquanto a Elisabeth cai numa profunda autossabotagem, se descarta quase que literalmente, corroída aos poucos pela tristeza e satisfação de ser o que é, com a autoestima zerada a ponto de se sentir insegura em ter um date com um cara que a venerava. Vale ressaltar que Fargeat sabe recriar o male gaze de modo provocativo e em tom de crítica, colocando a personagem de Margaret Qualley mais como um objeto sexual diante dos nossos olhos do que como um ser humano, e é exatamente isso que a indústria quer. Sobre os controversos minutos finais: eu amei o que vi. Estava sendo bombardeada com tanta bizarrice e loucura que quase fiquei que nem a Mia Goth chorrindo no final de Pearl, mas simplesmente só fui aceitando e me permitindo ficar cada vez mais imersa naquilo tudo, até os créditos finalmente subirem. Insano!
A Substância é um filme marcante e ousado, que opta por ser incisivo em sua mensagem central, brinca com o body horror de forma intencionalmente chocante e repulsiva, consegue perturbar, divertir, refletir. De longe a experiência mais maluca e satisfatória que eu tive no cinema em 2024, e fico muito feliz em ter ido a uma sessão 100% cheia. Esse tipo de filme tem que ser visto coletivamente mesmo, compartilhando calor humano, as reações espontâneas e inevitáveis das pessoas ao redor enriqueceram ainda mais minha experiência com o filme.