Lara’s review published on Letterboxd:
Não importa quantos bons musicais eu assista, sempre me impressiona a maneira como a direção consegue trazer a vivacidade dos palcos para as telas. Dois mundos que vêm da mesma semente mas são fundamentalmente diferentes, o que torna muito difícil o desafio de transformar musicais da Broadway em filmes. Alguns não funcionam, mas Wicked é uma daquelas histórias que nasceu para ser contada, seja em papel, em palco ou em tela.
A primeira parte do prelúdio de O Mágico de Oz conta a origem da suposta vilã e Bruxa Má do Oeste, Elphaba (Cynthia Erivo) e como ela ganhou o título de inimiga de Oz. Elphaba nasceu com a pele verde e fruto de um adultério, o que parece ter conferido à garota não só uma sina para conviver mas dons especiais que são muito valorizados neste universo fantástico, mas não por ela, que cresce como marginalizada até ter seus talentos reconhecidos pelo Mágico de Oz, que conta com a ajuda de Elphaba para derrotar um mal terrível. No caminho, a garota verde se depara, pela primeira vez, com o amor incondicional e a possibilidade de traçar o seu próprio caminho.
Wicked, além de ser rico em detalhes, é abundante em camadas. Pela primeira vez, uma atriz negra é escalada para interpretar Elphaba, escolha que não poderia fazer mais sentido. Quem mais do que uma mulher negra para entender o que é ser menosprezada, vista como agressiva, monstruosa e condenada ao título de bruxa porque nasceu com a cor de pele errada? Já era de se esperar uma performance de alto nível, mas Cynthia Erivo toma o papel de Elphaba como parte de si mesma e transpassa para a câmera todos os seus próprios traumas e vivências. Ao emprestar sua voz para a personagem, ela também canta por si própria e por todas as menininhas que passaram pelo que a estranha moça de pele verde passou.
Na epítome do filme, Elphaba canta que cansou de aceitar os limites que impuseram para ela. Ela atravessa estes limites e se liberta de obrigações que constantemente são colocadas em seus ombros sem o seu consentimento: A boa filha, a boa irmã, a boa amiga, a boa aluna…Mas ainda assim, acha uma brecha para se sacrificar, salvando Glinda e atraindo a atenção dos verdadeiros vilões para longe de sua causa e de quem ela queria proteger. O sacrifício – seu ato mais heroico, é o que faz dela a vilã tão terrível. Muito interessante porque Elphaba é uma personagem que está fugindo do esteriótipo da mulher negra como serva no cinema, e encontra um dilema porque por maiores que sejam os seus esforços, nunca nada será o suficiente, a não ser que ela aceite a subserviência.
É o que ela tenta fazer Glinda (Ariana Grande), ou a Bruxa Boa, entender. Glinda é o completo oposto de Elphaba, ela é perfeita, popular e loira. Glinda e Elphaba começam como arqui-inimigas na Universidade Shiz,mas Glinda, por mais que seja cega para o que vai muito além de seus privilégios, tem um coração enorme e em breve decide acolher Elphaba, entender suas dores e torna-la sua melhor amiga. Destaco a cena em que Elphaba, toda desajeitada para interações sociais, faz uma tentativa de dança num baile com muitos outros colegas da Universidade que a ridicularizam , por suas roupas e pele verde, mas Glinda decide largar a imagem da perfeição e acompanha Elphaba na dança, terminando por fugir com a amiga para longe do lugar. Estaria mentindo se eu dissesse que não me emocionei por alguns minutos.
Consolidada a relação das duas, o filme praticamente se alicerça na química de ambas as personagens. Créditos totais para Cynthia e Ariana, que estão perfeitas juntas exatamente por serem tão diferentes. Glinda e Elphaba são aquela dupla que você não consegue se cansar de assistir e anseia por mais a cada minuto de tela, as vozes se entrelaçam e escalonam juntas como um buquê e é nítido o trabalho de intimidade que as cantoras tiveram juntas fora de cena. Este é um par como nenhum outro e Jon M. Chu sabe disso. Percebi referências de The Young Girls of Rochefort (1967) e muitas homenagens às versões anteriores do musical da Broadway, sem exagero mas em momentos pontuais.
Voltando para o clímax do filme, retorno a falar sobre raça porque relações interraciais têm limites, e Glinda percebe isso pela primeira vez ao deixar sua melhor amiga ir embora, mesmo que não entendesse os seus motivos. E Elphaba, por sua vez, faz o mesmo. Ambas cantando “Eu espero que você seja feliz com sua escolha”, não de um jeito irônico, mas genuinamente desejando o melhor uma para outra, cientes de que aquela amizade transcende toda a bagagem que atravessa uma e outra.
Um comentário sobre o que me incomodou foi o uso excessivo de CGI nas cenas finais, em que começa o ato “Desafiando a Gravidade”, e acredito que existem melhores ferramentas do que as escolhidas para representar o voo de uma bruxa, tais como as telas de led utilizadas para criar um fundo virtual (mas que deram um efeito de luz natural muito bom) em The Batman (2022).
Outra camada do filme – mas não menos atual – é a necessidade que os governantes têm de criar um vilão para “unificar o povo” em momentos de crise, mas é uma desculpa para que a corrupção continue por debaixo dos panos. Musicais seguem uma formula e costumam associar a história com a época que é sua contemporânea, isso não é novidade. Mas já que dá tão certo, por que não aproveitar? Recentemente a Coreia do Sul sofreu um atentado de golpe de Estado sob a afirmação de que o país estava sendo ameaçado por comunistas, o que supostamente deveria fazer a população se sentir amedrontada e concordar com o que quer que acontecesse depois do plano consolidado. Isso vem acontecendo com frequência em outros países em que a extrema-direita está tentando voltar ao poder. É o que o grande Mágico intende ao querer dar fim à era dos animais, mas Elphaba está determinada à não deixar isso acontecer, o que descobriremos – espero que em breve – na parte dois, que possivelmente sairá num momento ainda mais semelhante da nossa própria história como humanidade.
Uma coisa sobre a arte é que ela sempre acompanha tudo que é sobre nós.
Como já mencionei, as camadas são diversas, e eu poderia discorrer sobre os figurinos cativantes, a montagem do fantástico mundo de Oz e as coreografias, mas isso eu deixo para os olhos apreciarem, porque quanto menos se sabe sobre Wicked, melhor é a aventura.