organização das nações unidas

“Um suíço, um italiano, dois argentinos, um brasileiro”. Foi desta forma que descrevi num grupo de amigas como andava minha agenda de contatos naquele momento: um registro de uma torre de Babel dos amores líquidos que daria orgulho (ou tristeza) a Bauman. A Nathalia adolescente com certeza ficaria fascinada com essa energia caótica a retumbar no coração: nas fantasias que ela desenha, vivo todas essas histórias, uma a uma, com CEPs e desfechos distintos. Já a Nathalia aqui adulta de 40 anos recém-completados acha apenas curioso ver que essa sede insaciável de mundo fez com que eu conseguisse sempre encontrar tantos novos horizontes, mesmo quando pareço não sair do lugar. Vivo a testar fronteiras e a experimentar línguas e linguagens, quando no fundo talvez cultive ainda apenas o sonho ingênuo da tal “sorte de um amor tranquilo” idealizada por Cazuza.

Lá fora, o vento sopra violento, derrubando quadros e pratos aqui dentro. Sigo a orientação da poeta sobre deixar espaço para certa desordem, mas trocando como convém: digo que é preciso arrumar o coração como se arruma as gavetas, e não o contrário. Embora também goste da tranquilidade e do conforto do amor tranquilo, permito, com graça e curiosidade, que pequenas bagunças se instalem nos cantos: numa torre de Babel inusitada apitando no celular, ou num amor inesperado que talvez se convide para entrar. Pode ser sempre primavera se a gente deixar.

lua nova em escorpião

“Não te parece mágico que alguém que nem sabíamos que existia dois meses atrás pode aparecer na nossa vida assim do nada e… de repente, passar a existir?” Você concordou, com seu sorriso ingênuo de canto de boca e seu olhar quase infantil que parecia conter a resposta para todos os mistérios do mundo: estava ali, ao meu lado, alguém que eu nem sabia que existia dois meses atrás e… de repente, passou a existir em minha vida, com seus olhos doces e jeito de simplificar o que não precisa ser complicado.

Ficamos por duas horas naquele quarto, e lembro-me de contar o tempo como se quisesse que ele se estendesse por mais do que havíamos programado: tinha qualquer coisa de eternidade ali naquele fragmento que eu queria preservar como uma pequena joia de família, das heranças que levamos conosco para o restante das nossas vidas – ainda não sei se esse tesouro precioso era minha confiança recém-conquistada após mais uma rejeição mal explicada, seu jeito afetuoso de me tratar como um presente inesperado, ou nosso assombro diante do que deve ser encarado como sagrado (porque é): o encontro, essa pequena faísca de milagre. Só sei que foram duas horas que duraram bastante e mesmo assim tão pouco, um tempo que eu reconhecia finito e ainda assim queria que não acabasse nunca.

Sua pele era mais macia do que seus contornos fortes entregavam, assim como a doçura de seus gestos contradiziam todas as minha ideias pré-concebidas do que você iria fazer ou dizer no instante seguinte: contrariando minha natureza sabichona, ali naquele nosso castelo recém-criado eu gostava muito de estar errada sobre tantas coisas – que delícia não saber nada de nada, ser surpreendida, estar sempre aprendendo! Manter esse olhar de criança pro mundo talvez seja mesmo um segredo guardado dos bem-aventurados, conservar a curiosidade intacta perante tanto cinismo é uma maneira de viver em constante estado de deslumbramento. Você abria portas para as quais eu nem sabia que existiam chaves e eu queria muito mergulhar neste universo assim tão novo de descobertas e encantos, me deixar levar por outra mão, ser conduzida nesta dança. Do lado de fora, o mar quebrava as ondas sem ruído e a gente ria das bobagens que dizíamos. Tão bom, não ter que provar nada a ninguém. No caminho de partida as luzes da avenida corriam borradas e as fronteiras entre as duas cidades-irmãs se diluíam, assim como a gente com nossos corpos juntos: onde dois se fazem um e não sabemos onde estão os limites entre começo e fim de um e outro, onde Santos é São Vicente que também é Santos, onde estou eu e está você e nós somos no plural e também um mais um é igual a um.

O dia seguinte amanheceu sem sol mas não me importei com as nuvens: a chuva se recolheu durante a tarde e pude guardar um pouco daquelas pinceladas de céu no que havia de restante de futuro a ser rascunhado. Tínhamos seu aniversário para comemorar na semana, e toda a vida que poderia se desenhar à frente. Afinal, dois meses atrás nem existíamos e… dois meses adiante, quem sabe?

 

as casas em que não morei

Sábado, sete e meia da noite, linha amarela do metrô. Em direção a um segundo encontro com alguém que me deixou curiosa para saber mais. Nosso primeiro beijo foi na fila do caixa da padaria, depois de irmos tomar chá, após o jantar do nosso primeiro encontro – um jantar em que muitas peças se encaixaram e outras eu nem fiz questão de saber onde ficavam. Havia meia-luz e uma música ambiente que fez com que esse encontro tenha sido como todos os encontros que eu sempre sonhava em ter quando fosse adulta e uma “mulher-independente-dona-de-mim”, desde que era menina e tinha apenas sonhos doidos e muita vontade de mundo. Não foi o primeiro, mas fazia tempo do último em que me senti tão assim vivendo a vida que eu sonhava em viver. Então aconteceu: andamos abraçados pela rua como se já fôssemos daqueles casais que estão juntos há tanto tempo que nem sabem mais contar o tanto de história que existe ali desde que tudo começou. E aí… eu quis vê-lo de novo, logo em seguida.

Estou no metrô com o estômago gelado feito um inverno fora de hora, em direção à sua casa. E começo a me questionar: será essa a próxima casa que irei habitar sem habitar? Começa a passar um filminho na minha cabeça de amores recentes que tive, de outros mundos aos quais me deram acesso: nesse universo particular que chamamos de lar cabe tanta informação sem que a gente diga uma palavra sequer. Conhecer a casa de alguém que estamos começando a conhecer é abrir uma porta também para todo este mundo subjetivo que existe ali: será que ele tem apenas um colchão austero na sala, um aparelho de som ostensivo e um xampu anticaspas no banheiro? Ou ele gosta de design e sabe manter vivas as plantas? Será que ele tem o mínimo de senso estético, sabe o que é um espaço convidativo e cheiroso? Consegue fazer uma visita se sentir confortável e “em casa”? Onde ele acorda todos os dias? Qual a última coisa que ele vê antes de dormir? A luz que entra faz quais desenhos quando atravessa a janela? Tem alguma coisa na geladeira além de cerveja, água e um ovo solitário? O que ele diz sem dizer através de seus móveis, objetos, utensílios? Será este o caminho que farei diversas vezes pelas próximas semanas/meses/anos, até decorar quantos passos levo de um canto ao outro, e cumprimentar todos que fazem parte do percurso porque já me conhecem, e saber quais os melhores horários para pegar menos tumulto? Eu penso em tudo isso e muito, muito mais no trajeto de meia dúzia de estações entre onde estou e onde vou chegar, entre a caminhada daqui até lá.

Me lembro das últimas casas que visitei, e das frestas de mundo que abri. Todos com seus objetos e seus significados, seus itens dessa coleção particular que eu ainda começava a desvendar. O único livro que M. tinha disposto, desses de arte que gostamos de ter para folhear ou para impressionar visitas, era do Edward Hopper, ao lado do violão que ele tocou pra mim na primeira noite que dormi lá. É curioso que o pintor escolhido tenha sido um que fale tanto de solidão numa casa que me parecia tão aconchegante, mas que na realidade nunca permitiu que eu me instalasse – mesmo que a música que ele tenha tocado pra mim tivesse sido uma que anuncia que “o amor verdadeiro irá nos encontrar ao final”, porque acho que ambos queríamos muito acreditar que era isso, que havíamos nos encontrado. Já a casa de C. era uma casa mesmo, dessas que têm portão pra rua e espaços generosos. Era herança de família, assim como alguns móveis dos quais ele morria de orgulho mas que não pareciam conversar com nada que havia ali. O piso era frio, havia poucos elementos fazendo a composição do todo, e algo soava fora do tom, desencaixado – assim como a gente, desde o início, embora tenhamos insistido um pouco. Ele me recebeu de forma afetuosa desde o primeiro instante e vira-e-mexe ainda me lembro de um sorriso cheio de sol que ele me deu numa das primeiras vezes em que nos vimos – hoje casado, ele diz que encontrou a “sua pessoa”. Ele jamais vai saber disso que vou dizer, mas este sorriso ainda me abriga em certas noites frias como um lugar em que posso me aquecer, na lembrança de que boas surpresas sempre irão nos aguardar em algum lugar, daquele abril tão cheio de promessas em que estivemos juntos sem estar. Já o apartamento do V. tinha uma luz branca e impositiva que me incomodava, cômodos excessivamente imensos, uma bagunça organizada. Entre seus tesouros, uma vitrola com discos muito bem escolhidos e um aparelho de fazer exercícios que ficava dentro do quarto. A lua prateada iluminava a casa toda sem esforço naquela noite, porque teimamos em deixar as janelas abertas. Amo janelas abertas. Pena que nós mesmos, tanto naquele dia quanto depois, apenas nos fechamos um para o outro, de forma irremediável.

Um clássico dos banheiros masculinos: sabonete de mãos Odor de Rosas da Phebo, marrom da embalagem amarelinha. Não sei se eles acham que a fragrância é mais interessante que outras, “menos feminina”, ou apenas não pensem tanto sobre tudo isso como eu penso: só sei que, de maneira quase infalível, em muitas dessas casas, quando fui ao banheiro lá estava ele, e eu podia me sentir um pouco em casa, mesmo sem estar.

A casa que visitei no sábado era um pouco como eu imaginava que seria. Pequena porém muito acolhedora, cheia de personalidade, assim como o dono. Em todos os cantos sentia seu perfume, que foi tema de conversa e ficou em mim por dias depois. Estava morrendo de cólica e ganhei chá e pipoca e, embora tenha gostado de tudo, sabia que não havia espaço para mim ali, mesmo tendo o sabonete que eu conhecia no banheiro, as plantas que eu gosto na sala, tanto que eu reconheço. Outro dia meu horóscopo disse que eu seguia buscando me “sentir em casa” com outra pessoa, e talvez seja isso: quando encontrei alguém que parecia uma casa que eu sempre habitei, ele precisou ir embora cedo demais. A casa dele não está descrita aqui porque de todas talvez fosse a que menos representasse seu morador, visto que ele estava aqui em caráter temporário – assim como estivemos um com o outro, também. Mas meu coração, este ele habita até hoje. No fim, somos as moradas que nós criamos: para os outros e para nós.

derrubar muros com as ondas de dentro

Foi num desses aplicativos que se pautam nos encontros e acabam promovendo tantos desencontros que nossos caminhos se cruzaram, num passado já tão distante e difuso. Era outra vida para você assim como era para mim, mas nossas vidas daquele ponto decidiram de certa forma continuarem próximas uma da outra, num encontro que não era romântico mas preenchia certos vazios. E assim anos se passaram, em que conhecemos outras pessoas, vivemos novas histórias, mudamos tanto sem nunca mudar. Você continuava ali, como aquela presença constante nas minhas existências virtuais, sempre se mostrando atento e interessado, provocativo na medida: era sua opinião contestadora e fora do padrão que me fazia questionar tantas coisas e me movia em outras direções.

Acontece que esses caminhos que se cruzaram apenas no espaço abstrato do online um dia se materializaram para uma tal vida mais real que a que enxergamos através de telas, e foi nela que seu olhar brilhou feito a faísca de uma estrela cadente numa noite de céu muito escuro. Não pude conter a surpresa e o encanto, e deixar que as coisas “acontecessem naturalmente” apenas fez com que elas de fato acontecessem. E nesse acontecer elas não mais aconteceram, e nossos caminhos resolveram seguir separados para todo o sempre que se chama hoje.

Não faz nem seis meses mas para mim parece que mais um punhado de anos se passaram. Sinto falta das nossas conversas, da sua resposta às minhas questões, das suas provocações. Do desconforto que você me causava e como esse incômodo fazia com que eu me sentisse tão viva às vezes. Sinto falta do apelido que você me deu, de como eu me sentia tão vista e tão exposta e ao mesmo tempo tão acolhida, de como eu queria querer seu amor com toda a força que tinha em mim. 

A verdade é que gostava de me ver através dos teus olhos, e me reconfortava naquele olhar generoso e compassivo que me abraçava feito um cobertor já muito usado, que nos aquece nas noites frias e solitárias. Foi difícil me despedir desse aconchego e reconhecer que ele não era mais um refúgio.

Talvez em mais um tempo que não sei se largo ou pouco a gente se reencontre nas esquinas da vida e volte a fazer parte da existência um do outro, com questionamentos e provocações e esse carinho tão imenso que ocupava todos os espaços disponíveis. Por ora, lamento a falta e a ausência, a saudade do que era e do que poderia ter sido, o luto das possibilidades. Me lembro de você dizendo que sentia que podia me contar tudo e me pego pensando para quem você está contando este tudo agora. Alguém cheio de hojes e amanhãs, espero.

desde que nos vimos pela última vez

já cortei o cabelo duas vezes
rompi o ligamento do meu tornozelo esquerdo e fiz onze sessões de fisioterapia
estive em três países diferentes, conheci três cidades novas e revisitei duas
experimentei oito comidas que nunca tinha provado
revi uma parte da minha família que não via há sete anos
e testemunhei 16 fases da lua
e tempestades de estrelas num céu que não é o meu
mas foi

desde que nos vimos pela última vez
aprendi frases completas em outra língua
e ainda mais comunicações que não exigem oralidade
(assim como nós, quando nos conhecemos, no nosso diálogo de mãos
criamos um vocabulário inteiro apenas com o toque dos dedos).

desde que nos vimos pela última vez
descobri construções milenares que resistiram à ação do tempo,
e caminhos que só fazem sentido quando testados.
dei risada até desatar alguns nós que carregava no estômago
e chorei de tristeza, de raiva, de alegria e de emoção.
por inabilidade errei as contas e por habilidade acertei novas palavras
(deslizei nas matemáticas e venci nas gramáticas)
e continuo a não saber diferenciar direita de esquerda.
seguindo apenas a direção dos meus instintos
fui bem feliz, apesar de

desde que nos vimos pela última vez,
minha paixão recolheu seu alvoroço nas paredes internas do meu peito
(mesmo vivendo uma primavera estrangeira por três semanas),
e já fiz a granola que você gostou mais quatro vezes
buscando outras maneiras de alcançar tua boca.

desde que nos vimos pela última vez
meu coração bateu depressa apenas por motivos tortos,
mas bateu.
segui miúda diante do que me pareceu imenso,
e mantive certa parte do meu encantamento.
aceito o mistério e engulo o acaso, o almoço, o absurdo.

desde que nos vimos pela última vez
há tanto que queria te contar
e há tanto que queria saber
da sua família planos passos brilho no olho amanhãs
das terras que você queria ocupar
dos sorrisos que deu ou deixou de dar
das ausências que largou pra trás

em quatro meses cabe um mundo
(coube o meu mundo)
e ele continua a seguir
sem o teu

desde que nos vimos pela última vez,
foi a última
sendo a primeira.

como assim o mundo não parou?

como assim o mundo não parou
no dia em que conversamos em silêncio
e nossas mãos se falavam por baixo da mesa
e voltei pra casa flutuando no teu sorriso
e ainda assim
minha amiga sofreu a pior violência que uma mulher pode sofrer
e meu abraço estava a uma estrada e meia de distância
e nem todo o meu choro lavou uma alma agora pra sempre marcada

como assim o mundo não parou
após meu mergulho no nosso primeiro beijo
naquela noite de céu limpo e lua clara
em que meu amigo pensou em desistir de tudo
e nem toda a vida que eu vi brilhar em seus olhos
era capaz de fazê-lo ficar

como assim o mundo não parou para eu sentir meu coração pulsando acelerado
e o seu cheiro persistente na minha boca
quando atendi minha amiga com a voz apagada
me contando da sua depressão aprofundada
e da vida tão difícil que destroça os muito sensíveis
e não consegui parar o compasso do tempo
para contar quantas horas haviam se passado desde que nos vimos pela última vez

como assim eu ainda tinha tanto amor para dar
tanto amor para viver
e as paredes ruindo ao meu redor
não foram capazes de suspender
seu desmoronamento
para eu apenas existir neste morar
para o mundo parar
para eu respirar
e amar
uma vez mais

o cheiro do céu

27/06/2003 “acordei empolgada. tinha sol, brisa morna e uma vida inteira pela frente”  eu não sei onde foi parar esta nathalia de dezoito anos que escrevia um diário com tanta sede de romantizar a própria vida, mas leio os escritos encantada com alguém que um dia já fui e não reconheço mais. me perco naquelas páginas onde pouco me encontro tentando reviver sentimentos ali tão novos e vívidos, buscando me resgatar onde eu nem lembrava estar. muitas vezes me sinto descobrindo a vida de uma outra pessoa, talvez porque seja assim mesmo – aquela vida, um dia tão minha, há muito não existe mais. nem aquela nathalia. o futuro está no passado. o quarto ao lado tem um aroma de ambiente recém-comprado, que alguém do marketing resolveu nomear de “céu e flor de sal”. eu nunca senti o cheiro do céu, e sal para mim é cheiro de pele pós-praia num dia quente de verão. lá no inverno de 2003, em que eu estava muito apaixonada e tão pronta assim pra vida, talvez o cheiro do céu fosse mais fresco do que é hoje – o que não quer dizer que fosse melhor, era apenas diferente. céu para mim era sempre azul, e agora não mais: vinte anos depois, aprendi a apreciar melhor os dias de céu nublado do que sabia naquela época, e talvez eu prefira o cheiro do céu em um dia “bonito pra chover” do que aqueles que parecem lavados à mão, e que agora estampam embalagens de spray para ambiente. estou voltando pra mim.

o sol de dentro nunca se põe

Cobriram todos os paralelepípedos da vizinhança, eu notei. Com o concreto puro e pesado do qual fazem asfalto: a poesia dos trajetos talvez mais difíceis de cruzar mas que nos remetem a caminhos de outras vidas agora são cobertos por um piche escuro, essa massa impiedosa que visa deixar tudo homogêneo, para as pessoas chegarem mais rápido a qualquer lugar, pra vida escapar com ainda menos cerimônia por entre os dedos, como aquela areia fininha que corre solta nas ampulhetas.

Hoje em dia contamos o tempo por outras medidas, mais precisas e pragmáticas, mas que nem por isso doem menos: os ponteiros do relógio ou os dias no calendário podem fazer tanto estrago quanto qualquer marcador de distâncias. Nosso tempo se tornou quilômetros corridos no abismo que se abriu desde a nossa última despedida, nesta contagem maluca dos corações que batem em descompasso: faz meses que nos vimos pela última vez, e o eco dos vazios é capaz de sons bem distintos.

Eu, que buscava um verso como âncora para aportar no teu silêncio, encontrei nos mares que se moviam dentro de mim uma nova direção para remar. Não me reconheço mais na pele que queimava com seu toque nem no estômago que se torcia todo só de ouvir o som do seu sorriso: num impulso implodi as estradas que me levavam até suas mãos como forma de proteger minhas fundações, e desde então não encontrei mais meu caminho de volta para o seu abraço, aquele recanto onde parecia haver espaço para o meu mundo todo. Aos poucos redirecionei minha atenção para fugir do amargor de não te ter onde achei que teria: reaprendi que as paixões podem acender chamas além da romântica, e outras descobertas me invadiram ao longo do ano como se fossem o desabrochar de uma nova estação. Não sofro mais, mas mentiria se dissesse que esqueci.

E assim a vida segue. Aos poucos chegam histórias, pessoas, destinos. Mantenho os olhos bem abertos e o peito descoberto, não ergo fronteiras nem imponho muralhas – eu não, eu quero o delírio…! Rascunho conciliações e construções, a vertigem do precipício: ter outra mão segurando a minha dizendo que é seguro mergulhar no ar, que criamos asas ao nos jogar. Este é o meu território. Eu não vim aqui para me anestesiar – quero o tombo e o recomeço, os amanhãs todos que chegam após os tropeços. Carimbos nesse passaporte imaginário de uma “vida bem vivida”, repleta de tudo o que existe de maravilhoso e de perigoso. Nem todas as manhãs são de céu azul, mas todo dia tem sol – mesmo que nem sempre a gente consiga ver. Só nos resta acreditar que ele continua lá.

esquinas de outubro

Havia projetado esse reencontro infinitas vezes em meus pensamentos e, mesmo tendo todas as condições favoráveis no dia em que ele aconteceu, ainda assim não soube lidar com o abismo que se abriu em meu peito ao te ver caminhando de surpresa em minha direção, na mesma calçada, naqueles poucos metros de distância que continham todos os meses que fiquei sem te ver. A força de um coração que cicatrizou calado no vazio do nosso silêncio me tragou antes que eu pudesse escapar, e eu não soube lidar com tudo o que desaguou naquela fração de espaço da “avenida mais movimentada da cidade” em que couberam todas as nossas possibilidades de um perdão. Eu fugi. Como fogem os covardes.

É curioso como projetamos as atitudes que teremos quando elas são tantas (im)possibilidades, e quando elas se materializam de fato acontece tudo menos o que imaginamos: meu peito ficou por horas depois retumbando uma dor que eu já havia até esquecido, mas seguia lá, adormecida: ter meu amor negado. Onde antes arderam as chamas de uma paixão que reacendeu a faísca que existia em mim, hoje havia as cinzas de uma terra arrasada. Tremi de aflição e medo e culpa, como todos que se reconhecem capazes de sentir tudo o que desloca nosso eixo, feito uma avalanche. Meus pés me desobedeceram e seguiram caminho próprio, buscando refúgio onde houvesse segurança, onde eu não pudesse me machucar de novo. A ilusão de se enxergar capaz de evitar os males maiores, como se houvesse salvação possível.

Isso já faz alguns meses, e então não mais. Continuo acreditando que você pode estar na próxima esquina de novo, e não é meu perfume favorito ou meu sorriso mais bonito que irá me proteger. Sigo caminhando a passos firmes, me distraindo com o céu e atenta a quem cruza meu caminho, abrindo o coração devagarinho para novas moradas.

Mas já não sinto mais medo: de mergulhar em abismos é que aprendemos a voar. 

um mapa até a sua mão

Nos sentamos lado a lado no salão de espera ainda vazio, aguardando a peça que começaria dali a uma meia hora, alguns andares acima. Os edifícios do Sesc, sempre tão cheios e movimentados, parecem um cenário abandonado quando já passa do horário das atividades: e era lá que estávamos, à meia luz, num daqueles sofás curvos em tom pastel. Eu fingia normalidade mas, sem que você percebesse, segurava o coração na boca, mastigava as palavras às vezes tortas e mal conseguia conter um sorriso tão solto: o peito batucava impiedoso toda aquela vontade contida de quem ainda insiste em acreditar, apesar de. Eu queria aquela euforia, como queria. Adoro estar apaixonada.

E foi ali, abraçados por aquele silêncio de um salão enorme ocupado por tantos espaços vazios, que você me contou que sua avó lhe ensinou a ler as linhas da mão. Você, cientista e das exatas, começou em tom de desculpas, “Não acredite em nada do que eu disser”. E com aquele sorriso de canto a canto (explicitando a malícia de quem talvez já tenha se acostumado a usar esse truque em outros encontros), emendou, “mas foi isso que eu aprendi”. Eu, talvez mais envolvida pelos teus olhos e pela oportunidade de tocar suas mãos do que por todo esse mistério ainda não-decifrado nas linhas da minha palma, pedi para você ler o que aqueles rabiscos queriam me dizer. Ali onde o passado, o presente e o futuro se encontram, como a nascente e a foz dos rios que só deságuam no oceano das minhas histórias já vividas ou apenas sonhadas: minha cicatriz na palma esquerda de um acidente doméstico aos nove anos, o hoje ali com o peito em chamas, o amanhã tão distante e por isso mágico. Colamos nossas mãos uma ao lado da outra e, enquanto você me explicava em qual caminho se traçava a tal “linha da vida”, qual falava sobre o amor e quantos filhos eu poderia ter, eu notei que nossas palmas tinham desenhos muito, muito diferentes. Tantos encontros cabem num desencontro, mas não existe mapa capaz de orientar um caminho que não nasceu para acontecer. Pouco depois, assistimos a peça sobre os mistérios do universo e seu beijo não me fez ver estrelas nem me restaurou um coração já tão partido, mas aqueceu um início de outono sem perspectivas de planos em conjunto, e por algumas semanas o céu pareceu sim mais azul.

Após aquele dia, tudo foi se diluindo nas demandas cotidianas, até nos tornarmos nós esse imenso espaço vazio ocupado por um silêncio. Por fim, o destino traçado nas mãos se concretizou: assim como nossas linhas que não se cruzavam, nos desencontramos e partimos sós. A vida segue como é de costume, e eu continuo a buscar paz onde ela quiser me encontrar. Que o mistério se manifeste onde a gente deixar.


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