Sábado, sete e meia da noite, linha amarela do metrô. Em direção a um segundo encontro com alguém que me deixou curiosa para saber mais. Nosso primeiro beijo foi na fila do caixa da padaria, depois de irmos tomar chá, após o jantar do nosso primeiro encontro – um jantar em que muitas peças se encaixaram e outras eu nem fiz questão de saber onde ficavam. Havia meia-luz e uma música ambiente que fez com que esse encontro tenha sido como todos os encontros que eu sempre sonhava em ter quando fosse adulta e uma “mulher-independente-dona-de-mim”, desde que era menina e tinha apenas sonhos doidos e muita vontade de mundo. Não foi o primeiro, mas fazia tempo do último em que me senti tão assim vivendo a vida que eu sonhava em viver. Então aconteceu: andamos abraçados pela rua como se já fôssemos daqueles casais que estão juntos há tanto tempo que nem sabem mais contar o tanto de história que existe ali desde que tudo começou. E aí… eu quis vê-lo de novo, logo em seguida.
Estou no metrô com o estômago gelado feito um inverno fora de hora, em direção à sua casa. E começo a me questionar: será essa a próxima casa que irei habitar sem habitar? Começa a passar um filminho na minha cabeça de amores recentes que tive, de outros mundos aos quais me deram acesso: nesse universo particular que chamamos de lar cabe tanta informação sem que a gente diga uma palavra sequer. Conhecer a casa de alguém que estamos começando a conhecer é abrir uma porta também para todo este mundo subjetivo que existe ali: será que ele tem apenas um colchão austero na sala, um aparelho de som ostensivo e um xampu anticaspas no banheiro? Ou ele gosta de design e sabe manter vivas as plantas? Será que ele tem o mínimo de senso estético, sabe o que é um espaço convidativo e cheiroso? Consegue fazer uma visita se sentir confortável e “em casa”? Onde ele acorda todos os dias? Qual a última coisa que ele vê antes de dormir? A luz que entra faz quais desenhos quando atravessa a janela? Tem alguma coisa na geladeira além de cerveja, água e um ovo solitário? O que ele diz sem dizer através de seus móveis, objetos, utensílios? Será este o caminho que farei diversas vezes pelas próximas semanas/meses/anos, até decorar quantos passos levo de um canto ao outro, e cumprimentar todos que fazem parte do percurso porque já me conhecem, e saber quais os melhores horários para pegar menos tumulto? Eu penso em tudo isso e muito, muito mais no trajeto de meia dúzia de estações entre onde estou e onde vou chegar, entre a caminhada daqui até lá.
Me lembro das últimas casas que visitei, e das frestas de mundo que abri. Todos com seus objetos e seus significados, seus itens dessa coleção particular que eu ainda começava a desvendar. O único livro que M. tinha disposto, desses de arte que gostamos de ter para folhear ou para impressionar visitas, era do Edward Hopper, ao lado do violão que ele tocou pra mim na primeira noite que dormi lá. É curioso que o pintor escolhido tenha sido um que fale tanto de solidão numa casa que me parecia tão aconchegante, mas que na realidade nunca permitiu que eu me instalasse – mesmo que a música que ele tenha tocado pra mim tivesse sido uma que anuncia que “o amor verdadeiro irá nos encontrar ao final”, porque acho que ambos queríamos muito acreditar que era isso, que havíamos nos encontrado. Já a casa de C. era uma casa mesmo, dessas que têm portão pra rua e espaços generosos. Era herança de família, assim como alguns móveis dos quais ele morria de orgulho mas que não pareciam conversar com nada que havia ali. O piso era frio, havia poucos elementos fazendo a composição do todo, e algo soava fora do tom, desencaixado – assim como a gente, desde o início, embora tenhamos insistido um pouco. Ele me recebeu de forma afetuosa desde o primeiro instante e vira-e-mexe ainda me lembro de um sorriso cheio de sol que ele me deu numa das primeiras vezes em que nos vimos – hoje casado, ele diz que encontrou a “sua pessoa”. Ele jamais vai saber disso que vou dizer, mas este sorriso ainda me abriga em certas noites frias como um lugar em que posso me aquecer, na lembrança de que boas surpresas sempre irão nos aguardar em algum lugar, daquele abril tão cheio de promessas em que estivemos juntos sem estar. Já o apartamento do V. tinha uma luz branca e impositiva que me incomodava, cômodos excessivamente imensos, uma bagunça organizada. Entre seus tesouros, uma vitrola com discos muito bem escolhidos e um aparelho de fazer exercícios que ficava dentro do quarto. A lua prateada iluminava a casa toda sem esforço naquela noite, porque teimamos em deixar as janelas abertas. Amo janelas abertas. Pena que nós mesmos, tanto naquele dia quanto depois, apenas nos fechamos um para o outro, de forma irremediável.
Um clássico dos banheiros masculinos: sabonete de mãos Odor de Rosas da Phebo, marrom da embalagem amarelinha. Não sei se eles acham que a fragrância é mais interessante que outras, “menos feminina”, ou apenas não pensem tanto sobre tudo isso como eu penso: só sei que, de maneira quase infalível, em muitas dessas casas, quando fui ao banheiro lá estava ele, e eu podia me sentir um pouco em casa, mesmo sem estar.
A casa que visitei no sábado era um pouco como eu imaginava que seria. Pequena porém muito acolhedora, cheia de personalidade, assim como o dono. Em todos os cantos sentia seu perfume, que foi tema de conversa e ficou em mim por dias depois. Estava morrendo de cólica e ganhei chá e pipoca e, embora tenha gostado de tudo, sabia que não havia espaço para mim ali, mesmo tendo o sabonete que eu conhecia no banheiro, as plantas que eu gosto na sala, tanto que eu reconheço. Outro dia meu horóscopo disse que eu seguia buscando me “sentir em casa” com outra pessoa, e talvez seja isso: quando encontrei alguém que parecia uma casa que eu sempre habitei, ele precisou ir embora cedo demais. A casa dele não está descrita aqui porque de todas talvez fosse a que menos representasse seu morador, visto que ele estava aqui em caráter temporário – assim como estivemos um com o outro, também. Mas meu coração, este ele habita até hoje. No fim, somos as moradas que nós criamos: para os outros e para nós.