Adeus ao blog. Viva o jardim digital.
Aprenda mais sobre o novo modelo de conteúdo digital feito para durar
Atualização em 19/03/2022.
Poucas expressões envelheceram tão mal quanto “blog”.
Os blogs já foram a vanguarda da internet e hoje estão cada vez mais cheios de ruído, textos ruins, excesso de SEO e pouca criatividade. O marketing digital sequestrou a internet e transformou os blogs em espaço de propaganda disfarçada de conteúdo.
Esse desgaste tem levado muitos autores em direção de outros formatos e plataformas. E se você gosta de escrever online e está sempre em busca de novas ideias, em algum momento irá se deparar com o conceito digital gardens, os jardins digitais.
Cultivando informação
Num texto bem antigo para os padrões da web (online desde 1998), o autor Mark Bernstein apresentou a ideia de “jardim do hipertexto”, que nada mais era do que espaços na internet interconectados através de links.
Você poderia escrever de modo linear, criando um blog mais ou menos como um diário, mas também poderia criar um site estilo “buraco de minhoca”, que cruzaria o ciberespaço utilizando uma ferramenta básica: o link. Esse seria o início de um conceito ainda mais complexo, o “jardim digital”, um ecossistema centralizado na figura do criador de conteúdo, que não segue regras de SEO ou se importa em ser “escalável” ou compartilhável como uma rede social.
Jardins digitais são espaços de expressão, (pessoal, de um grupo, uma marca ou uma ideia) que cumprem basicamente três regras:
- Aprofundar o conhecimento sobre um ou vários temas.
- Estar em constante edição.
- Representar suas visões pessoais através de uma organização/criação hipertextual.
Segundo uma pesquisa realizada pelo MIT, os jardins digitais não são blogs, nem redes sociais, mas também não são sites totalmente experimentais e sem sentido. O conceito de jardinagem nos remete a algo em evolução, de frutificação lenta e que é mantido pelo prazer da prática.
Maggie Appleton, uma das referências no assunto, separa seus temas por níveis de “amadurecimento”. Em seu site existem textos em nível de semeadura, florescimento ou que já são plantas perenes.
No exemplo do site de Maggie, temas como programação de apps ou as questões éticas dos dados digitais podem começar como uma simples nota de texto e ir evoluindo até se tornarem em complexos de informações amplos, com links, vídeos, imagens, outros textos, colaborações…
Essa é a essência do digital gardening: não criar apenas blogs estáticos com textos fechados, mas construir um repositório de informações sobre aquilo que você entende bem ou ama.
Uma internet mais lenta
Segundo Tom Critchlow (criador de um excelente jardim digital), a principal diferença entre os blogs tradicionais e a jardinagem digital é:
Com o blog, você está falando para um grande público, enquanto que com a jardinagem digital, você está falando consigo mesmo. Você se concentra no que deseja cultivar ao longo do tempo.
A visão de Tom é justamente o oposto do que o marketing digital prega. O jardim digital busca primeiro resolver um desejo do autor — o contato com o leitor quase sempre é casual ou até mesmo irrelevante.
Mas nos exemplos que veremos a seguir, é fácil perceber que é possível ser um digital gardener sem ser um completo isolacionista — afinal, se a sua ideia é não se conectar a nenhuma audiência, o melhor seria anotar suas ideias num caderno Tilibra, certo?
O que os jardins digitais provam é que existe um forte movimento de criadores(as) de conteúdo que não querem necessariamente influenciar ninguém, nem seguir a rigidez do SEO. São autores e autoras que desejam se expressar de modo livre, tendo a internet como matéria prima para suas explorações.
Ainda de acordo com a pesquisa do MIT, jardins digitais são “uma forma mais lenta e desajeitada de explorar a internet”. E não há nada errado em buscar um conhecimento digital lento, pelo contrário. Num ambiente em constante aceleração, diminuir a velocidade de consumo de conteúdo é um ato de resistência.
Já falei aqui sobre a teoria da floresta negra e de como estamos buscando ambientes digitais longe do ruído, dos spams e dos haters. O jardim digital é parte desse um retorno às origens. Ele é uma espécie de blog de longo prazo, onde autores buscam aprender e também ensinar mais sobre um assunto. Pode ser apenas uma lista pessoal online com suas resenhas de livros, ou um grande complexo de sites sobre antropologia. Não se trata de um conteúdo que você irá descartar em nome de um modismo qualquer.
Por onde começar o seu jardim digital
Quando falamos de jardins digitais, plataformas como Wordpress ou até o Medium podem não ser ideais para propostas ousadas, como o complexo jogo de notas e links criados no site do desenvolvedor Andy Matuschak, por exemplo. Nesse caso, você precisará saber pelo menos o básico de programação e criar sua própria estrutura online.
Parafraseando o dr. Iam Malcolm em Jurassic Park, a vida digital sempre encontra um jeito e o mundo dos jardins digitais não é exclusivo dos programadores.
O estudante Jeremy Nixon criou o seu inteiramente num documento do Google Docs. O projeto batizado de The Index está em constante edição e aceita sugestões dos leitores.
Eis alguns sites e plataformas para quem não manja nada de programação (todos possuem versões gratuitas):
Notion
O Notion é um dos melhores apps para criar absolutamente qualquer tipo de site híbrido. Ele funciona como uma espécie de bloco de notas que pode ser publicado como um site e atualizado como um blog.
Softr
O Softr é um dos projetos que mais admiro quando o assunto é a criação de sites e jardins digitais. Ele permite transformar bancos de dados em páginas com design bem elegante e funcional. Com zero conhecimento em programação você pode criar uma variedade enorme de modelos.
Obisidian
O Obsidian é certamente o mais impressionante editor de conteúdo que conheço. Queridinho dos programadores, pode ser usado por qualquer pessoa interessada em criar ambientes digitais únicos. Ele funciona como um editor e gerenciador de arquivos capaz de organizar praticamente qualquer tipo de conteúdo (aqui um exemplo de site/jardim digital).
Google Docs
Como já citei, dá pra fazer um site inteiro no Docs. Basta inserir os links certos e compartilhar o link de acesso no modo apenas de leitura.
You dont need Wordpress
Ainda falando em Google Docs, o You dont need Wordpress (YDNW para os íntimos) tem uma proposta ousada: transformar qualquer doc em site. Pá-pum. Saiba mais nessa análise da ferramenta.
No Code
O No Code é um concorrente direto do YDNW e oferece o mesmo modelo que converte documentos de texto do Google em sites, ou até mesmo numa rede privada estilo intranet.
Sheet to site
Se você prefere lidar com as tabelas do Google Docs, eis o Sheet to site um projeto digital que transforma suas planilhas em sites. Essa bruxaria é ideal para quem deseja criar um jardim digital no estilo de lista (tipo esse).
Telescope
O Telescope promete ser uma versão minimalista do Medium, sem anúncios, sem feed, somente texto. O design limpo ainda tem um grande diferencial: um serviço incrivelmente simples para enviar seus textos aos leitores via rss ou e-mail.
Hypothesis
A plataforma Hypothesis funciona como um bloco de notas, que pode ser público ou não, e serve para marcar trechos de sites e abrir comentários. Pode ser útil na criação de um modelo de jardim digital do tipo crítica ou remix de conteúdo de terceiros, ou ainda abrir espaço para blocos de notas dinâmicos.
Se você entende de programação, ou quer compreender mais o bê-a-bá dos jardins digitais (existem jardins abertos, privados, colaborativos), recomendo acessar o Github da Maggie Appleton, com dicas de diferentes plataformas e links úteis para quem quer se aventurar nesse universo.
Outro ambiente cheio de informação sobre o assunto é a página dos jardineiros digitais no Reddit.
Alguns exemplos
O conceito de jardim digital ainda é novidade por aqui e boa parte do conteúdo disponível está em inglês. Um bom começo é aprender com quem já domina o assunto.
Um bom exemplo é o Sawyer’s reading highlights, uma lista de leituras e dicas sempre em evolução.
O desenvolvedor Cris Biscardi possui seu jardim digital com notas pessoais e também uma pequena biblioteca com textos sobre programação.
Melanie Richards criou uma mistura de site e blog notes com trechos de seus livros favoritos.
Tom Critchlow criou um jardim digital ancorado em links e no formato de wiki (estilo Wikipédia).
Aaron Z. Lewis criou um complexo que mistura site, lista de leituras, blog, newsletter e portfólio. É um exemplo de criador de conteúdo multifacetado, sem foco em nicho e interessado em vários temas (todos excelentes).
Algumas matérias e artigos sobre os jardins digitais
Reproduzo aqui a lista criada por Maggie Appleton com alguns artigos fundamentais sobre o assunto. A lista será editada de tempos em tempos:
- The Garden and the Stream: A Techno pastoral by Mike Caulfield
- Of Digital Streams, Campfires and Gardens by Tom Critchlow
- How the Blog Broke the Web by Amy Hoy
- My blog is a digital garden, not a blog by Joel Hooks
- You and your mind garden by Anne-Laure Le Cunff
- Digital Garden Terms of Service by Shawn Wang
- What is a digital garden? by Chris Biscardi
- The Garden and the Stream: An IndieWeb Pop-up Session
- The Swale: Weaving between Garden and Stream by Will Stedden
- A Brief History & Ethos of the Digital Garden by Maggie Appleton
A principal dica é saber que nem só de redes sociais tóxicas e sites caretas é feita a internet. Ainda podemos criar canais de expressão pessoal cheios de dinamismo e possibilidades. Dá um pouco de trabalho, mas é o preço que temos que pagar para termos acesso a uma internet mais inclusiva e democrática.
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